“O propósito da mídia não é de informar o que acontece, mas sim de moldar a opinião pública de acordo com a vontade do poder corporativo dominante”.

Noam Chomsky

Um velho dito sobre as guerras, atribuído a mais de um autor, afirma que, quando a guerra começa, a verdade é sempre a primeira vítima. A partir do início da intervenção militar russa na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os grandes grupos de mídia e as empresas que controlam as redes sociais em todo o mundo ocidental, desde seu centro até às periferias, difundem o discurso ideológico dos EUA e de sua aliança militar. Em sua narrativa a respeito das guerras em que se envolvem, os seus inimigos são demonizados, aqueles que enfrentam os demônios são saudados como heroicos guerreiros pela liberdade e a própria superpotência e seus aliados são apresentados como faróis e garantidores da democracia, da liberdade, dos direitos humanos e de tudo mais que há de bom no mundo.

Encobrindo a realidade do conflito militar, há hoje um espesso véu de simplificações maniqueístas, mentiras e meias verdades difundidas pela poderosíssima máquina de propaganda da superpotência imperialista. Cabe às várias organizações da esquerda socialista a divulgação das informações ocultadas pela chamada “mídia OTAN” e o debate franco e aberto sobre essas informações.

O Papel dos Estados Unidos (EUA) e da sua aliança militar (OTAN)

Uma das maiores ocultações empreendidas pela grande mídia diz respeito ao papel nocivo dos EUA e de sua aliança militar, a OTAN, na escalada de tensões que levou a esse conflito militar. Desde o fim da União Soviética e da sua própria aliança militar, o Pacto de Varsóvia, ocorridos em 1991, a Organização do Tratado do Atlântico Norte perdeu seu propalado objetivo inicial: a defesa dos países do bloco capitalista contra a URSS e seus aliados.

Nos 30 anos desde o fim da bipolaridade entre superpotências, os EUA aumentaram seu poderio militar, buscando se afirmar como a única superpotência do planeta. Com mais de uma centena de bases militares espalhadas pelo globo e um orçamento militar que supera o de outras potências militares somadas, a superpotência estadunidense se autoconcedeu o papel de polícia do planeta. Foi nesse cenário de unipolaridade que os EUA deram nova função à OTAN, como extensão do seu braço militar. Não à toa, as primeiras missões militares da Aliança Atlântica ocorreram nos anos 1990, após o fim da União Soviética, quando a aliança interferiu nos violentos enfrentamentos que marcaram a dissolução da Iugoslávia. Mais tarde, em 2001, com base na obrigação de defender qualquer um de seus membros de agressões militares, a OTAN se engajou na guerra contra o Afeganistão, acusado como país responsável pelo ataque ao World Trade Center.

A narrativa da grande mídia ocidental também oculta a hipocrisia dos EUA e seus aliados. A intervenção militar russa na Ucrânia recebe pesadíssimas condenações e a Rússia sofre sanções nunca vistas. Porém, as inúmeras guerras iniciadas pela superpotência ianque e seus aliados, a maioria das quais violou leis internacionais e produziu resultados muito mais sangrentos, nunca receberam o mesmo nível de condenação. O ataque e a ocupação do Afeganistão, iniciados em 2001, a brutal ocupação do Iraque iniciada em 2003, a manutenção da prisão de Guantánamo, em Cuba, que segue ativa até hoje, entre muitos outros episódios repletos de violações de direitos humanos, contam com a complacência internacional reservada apenas à superpotência dominante e seus protegidos.

Além do histórico de brutalidades, os EUA passaram a estimular a ampliação da OTAN para o Leste Europeu, antiga zona de influência da URSS, incorporando à aliança países que haviam integrado o extinto Pacto de Varsóvia (como Polônia, Hungria, Bulgária, Romênia), países dos Bálcãs, como a Albânia e ex-repúblicas iugoslavas (Croácia, Eslovênia, Montenegro) e mesmo ex-repúblicas soviéticas (Estônia, Letônia, Lituânia). Essa ampliação da OTAN, se não é ocultada pela grande mídia, é apresentada de forma neutra, quando não fortemente positiva. Seriam os EUA generosamente preocupados com a proteção dos países europeus. Mas, na verdade, o avanço da Aliança Atlântica mira a Rússia como ameaça aos interesses geopolíticos dos EUA. Grande produtora e exportadora de recursos energéticos, como petróleo e gás, a Rússia pós-soviética sempre foi vista com maior ou menor desconfiança pelas potências ocidentais. Segundo autoridades russas, houve um compromisso não escrito, externado ainda em 1990, de que os EUA não incorporariam à OTAN os antigos territórios da URSS. Mas isso foi descumprido, sob alegação de que nunca houve acordo assinado, e em 2008 houve o aceno às ex-repúblicas soviéticas da Geórgia e Ucrânia para sua integração à Aliança Atlântica.

A participação política dos EUA na desestabilização da Ucrânia

Outra ocultação operada pela grande imprensa ocidental diz respeito à participação dos EUA na desestabilização política da Ucrânia. Entre 2004 e 2005, o país foi palco da chamada Revolução Laranja, considerada uma das primeiras “revoluções coloridas” do século XXI, vistas por analistas críticos ao imperialismo ocidental como parte das “guerras híbridas”, complexas campanhas de desestabilização de governos envolvendo estímulo a manifestações oposicionistas moralistas e despolitizadas (“contra a corrupção” ou “contra tudo que aí está”), cooptação de autoridades judiciárias para perseguição criminal abusiva de lideranças e articulação de manobras parlamentares de legitimidade questionável, entre outras ações destinadas a substituir governos pouco confiáveis (aos olhos do imperialismo) por lideranças mais palatáveis aos interesses das potências ocidentais.

A Revolução Laranja teve êxito em afastar um governo pró-russo da Ucrânia e abrir caminho para um governo pró-Ocidente. Porém, a insatisfação popular com tal governo levou à vitória eleitoral da oposição pró-Rússia em 2010. A reação não tardaria a se manifestar, o que ocorreu entre 2013 e 2014, nas revoltas que ficaram conhecidas como “Euromaidan”. Os protestos foram particularmente fortes na capital, Kiev, e nas regiões do oeste do país, onde houve muita violência e registros de mortes. Nessas revoltas, emergiram grupos de extrema direita que deram origem a milícias nazistas, como o Pravyy Sektor e o Batalhão Azov. Este último seria, mais tarde, incorporado ao exército ucraniano. Derrotado, o então presidente Viktor Yanukovitch foi obrigado a se afastar e partiu para o exílio na Rússia.

Porém, no sul e leste da Ucrânia, onde se concentram os russos étnicos (população de língua e cultura russas), houve manifestações a favor do governo durante o Euromaidan. Na península da Crimeia, ao sul do país, foi realizado um plebiscito que aprovou por esmagadora maioria a independência da região e sua reaproximação com Moscou. Na região da bacia do rio Don (Donbass), ao leste, outros dois plebiscitos aprovaram a proclamação das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e Luhansk ou Lugansk (RPL).

Uma das meias verdades divulgadas pela mídia ocidental é quanto à anexação da Crimeia pela Rússia, por meio de notícias nas quais se costuma omitir o imenso apoio da população local a essa reintegração. Escreve-se aqui “reintegração” porque outra informação omitida é que, dentro da URSS, a Crimeia fazia parte da República Federativa Soviética da Rússia até os anos 1950, quando o governo de Nikita Kruschev transferiu a região para a República Soviética da Ucrânia.

Porém, a maior omissão da grande mídia talvez seja com relação ao conflito militar na região do Donbass. Trata-se de uma autêntica guerra civil, com milhares de mortos desde 2014. O governo ucraniano alega lutar contra os “terroristas” ou “insurgentes” das repúblicas populares ali proclamadas. Os combatentes da RPD e RPL, por sua vez, apelam à necessidade de defender a população civil da região contra os ataques do exército ucraniano, no qual já está integrado o Batalhão Azov, e de grupos paramilitares como o famigerado Pravyy Sektor. Para alcançar a paz, foram assinados, em setembro de 2014, os Acordos de Minsk, por representantes da Ucrânia, Rússia, RPD e RPL, sob os auspícios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Os acordos previam o cessar-fogo imediato, com o estabelecimento de corredores desmilitarizados, o reconhecimento da autonomia das regiões rebeldes, a anistia aos combatentes, exceto em casos de crimes graves, a retirada de grupos paramilitares pró-governo ucraniano da região e a garantia de fiscalização por parte da OSCE, entre outros pontos.

Os acordos de Minsk não foram cumpridos

Os Acordos de Minsk nunca saíram do papel. A violência, pelo contrário, teria aumentado ano a ano nos territórios contestados. As duas repúblicas populares, junto com a Rússia, denunciaram várias violações de direitos humanos, incluindo assassinatos e prática de torturas por parte de tropas a serviço do governo ucraniano. Ao mesmo tempo, acusaram as autoridades da União Europeia de omissão em relação às denúncias. Em fevereiro de 2022, nova etapa do conflito foi aberta, com o reconhecimento oficial, pela Rússia, da RPD e da RPL. O presidente russo, Vladimir Putin, declarou que os Acordos de Minsk haviam sido mortos pelo governo da Ucrânia e que não era mais possível tolerar o que ele chamou de “genocídio” perpetrado sobre a população de Donbass. Dias após, foi ordenada a invasão do território ucraniano pelas tropas russas, chamada por Putin de “operação especial”, com os objetivos declarados de “desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”. Há de se notar, porém, que mesmo antes da intervenção militar russa, já havia combates no país. A população das repúblicas populares do leste da Ucrânia vive sob guerra há oito anos!

Parte essencial de qualquer propaganda de guerra, seja convencional ou híbrida, é a vilanização ou mesmo a demonização descarada do oponente. Seguindo essa receita, Vladimir Putin é apresentado na mídia ocidental, após a invasão da Ucrânia, em tons cada vez mais sinistros: ditador perigoso, homem desequilibrado, ávido por poder, expansionista, semelhante a Hitler, além das acusações comuns (e mais próximas da verdade) de autoritário, machista, homofóbico e truculento. Em torno do governante russo, o véu de mentiras, meias verdades e simplificações se torna ainda mais espesso, quase impenetrável.

Os objetivos da “mídia OTAN” e a análise concreta da situação

Ao contrário dos objetivos da “mídia OTAN”, que tenta a todo momento direcionar a indignação da opinião pública para os alvos escolhidos segundo os interesses das classes dominantes ocidentais, a preocupação da esquerda socialista deve ser “a análise concreta da situação concreta”. Assim, torna-se mais importante entender o regime político do que o chefe de governo e ainda mais importante compreender a atuação concreta daquele Estado nacional nas disputas geopolíticas.

Setores da esquerda, e mesmo do centro liberal, questionam com razão o regime chefiado por Putin, pelo seu conservadorismo, machismo, LGBTfobia e demonstrações de truculência com relação a adversários. Ora apresentado como um defensor da antiga grandeza imperial russa, ora como um entusiasta do período soviético, o líder russo, no contexto da atual guerra na Ucrânia, se apresenta antes como um nacionalista preocupado com a segurança do seu país. E, mais importante, não se encontra isolado entre os integrantes do Estado russo. Na Duma (equivalente à Câmara dos Deputados brasileira), o reconhecimento da RPD e RPL foi aprovado por unanimidade O maior partido de oposição ao governo Putin, com mais de 40 deputados na Duma, é o Partido Comunista da Federação Russa (PCFR). Além de ter apoiado unanimemente o reconhecimento das repúblicas populares do leste da Ucrânia, o PCFR, em sua maioria, apoia a intervenção militar no país vizinho, vista como necessária à proteção da população do Donbass e à desmobilização dos grupos neonazistas ucranianos.

A atual ofensiva militar seria, então, uma resposta à aspiração de ressuscitar o velho imperialismo russo ou mesmo o controverso “imperialismo soviético”? Essa aspiração seria partilhada por quase todo o establishment político e, por tabela, por vastos setores da população russa? Novamente, é preciso voltar à análise concreta da situação concreta. O imperialismo nunca nasceu nem nasce da vontade individual de homens notáveis, nem mesmo da simples ganância das classes dominantes de países ricos. O imperialismo clássico, entre os séculos XIX e XX, caracterizou-se pela existência de superpotências nas quais a economia, as instituições políticas e o aparato ideológico estavam firmemente voltados à conquista, manutenção e ampliação de vastos impérios coloniais. Na atualidade, apenas uma superpotência tem poder para impor seu poder econômico, político, militar e ideológico a todo o globo. Subordinadas à superpotência dominante, velhas potências imperiais como o Reino Unido e a França podem assumir o papel de potências regionais ou potências associadas ao imperialismo ianque. Pode-se falar, sem dúvida, de potências militares e, entre elas, incluir a Rússia. Mas o imperialismo, como descrito acima, vai muito além da posse e uso de um aparato militar superior.

Mesmo que Putin e os oligarcas russos quisessem ou venham a querer exercer um papel imperialista, não é isto que se efetiva hoje. Ao contrário, a Rússia reage à ofensiva imperialista dos EUA e seus aliados, que se realiza por uma série de provocações, ameaças e medidas econômicas: ampliação da OTAN rumo à fronteira russa, guerras híbridas para desestabilização de ex-repúblicas soviéticas, sanções destinadas a asfixiar a Rússia. Questionar o governo conservador e autoritário de Putin não deve ser sinônimo de ignorar as demandas legítimas do seu país por segurança contra o imperialismo ianque.

Sobre a defesa da soberania da Ucrânia, que muitos consideram estar em jogo na atual guerra, incluindo valorosos e valorosas militantes de organizações da esquerda socialista, é preciso notar que um país europeu periférico filiado à OTAN se tornará um mero subalterno dos EUA. Mesmo os países centrais da Europa Ocidental, que ainda poderiam ser chamados de potências (as já citadas França e Grã-Bretanha e, até certo ponto, a Alemanha), se subordinam geopoliticamente aos interesses da superpotência ianque. O que se poderá dizer de uma ex-república soviética, pobre para os padrões europeus, exportadora de produtos agrícolas? Será utilizada como pouco mais de um brinquedo nos jogos de guerra do imperialismo ocidental, empregada em “proxy wars” (guerras por procuração), como já se ensaia neste conflito militar. Note-se que a OTAN não enfrenta diretamente a Rússia, mas envia armas para os ucranianos fazerem o combate em nome dos ocidentais.

É fato que a invasão da Ucrânia pode, legitimamente, ser entendida como uma violação do direito internacional. Mas a paz não poderá ser alcançada simplesmente com a saída das tropas russas do país, se a OTAN continuar sua expansão abusiva, se o exército e os paramilitares ucranianos continuarem a guerra contra a população do Donbass, se neonazistas continuarem infiltrados nas forças militares e na política ucranianas. Todos estes aspectos deverão ser contemplados para se alcançar uma paz duradoura.

Em defesa da PAZ duradoura no MUNDO!

Pelo fim de todas as hostilidades militares na Ucrânia, inclusive contra a população do Donbass!

Pelo congelamento do avanço da OTAN e desmantelamento dessa aliança militar!

Pela desmobilização dos grupos neonazistas, tanto os que estão nas forças armadas ucranianas quanto os paramilitares, com efetiva apuração das denúncias de crimes atribuídos a esses grupos, julgamento e punição dos responsáveis!

Pela negociação diplomática com relação aos territórios em disputa, como a Crimeia e o Donbass, e efetivo cumprimento dos acordos firmados!