Rio de Janeiro se destaca pela onda de intolerância religiosa

Casos de intolerância religiosa crescem no Rio de Janeiro. Segundo dados do Disque 100, as denúncias aumentaram 119% em 2016, em comparação com 2015 (SBT BRASIL – 23/08/2017). Registros na Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos mostram que em apenas uma semana, 20 casos foram denunciados. Já existe a demanda pela criação de uma delegacia especializada.

Maria da Conceição Cerqueira da Silva, de 65 anos, moradora de Nova Iguaçu, foi agredida com pedradas no rosto no mês de agosto deste ano. Casos de incêndio e ou destruição de objetos religiosos em casa de candomblé, discriminação de quem professa religião de matriz africana com ameaça até de despejo do local onde mora, levou autoridades a suspeitarem de uma possível “milícia religiosa”.

Nesta semana diversas denúncias tem sido divulgada via internet mostrando mais uma forma perversa contra as casas de santo/terreiros. Num desses vídeos agressores evangélicos, que dizem seguir Jesus, ameaçam de morte se os seguidores não destruírem seu próprio terreiro.

Racismo religioso esse é o retrato da intolerância no Brasil

O mito da democracia racial tenta esconder as diversas formas do racismo no Brasil e uma delas tem relação com as religiões de matriz africana, uma das formas de resistência do povo negro trazido nos navios negreiros. Além da imensa desigualdade social que atinge em especial o povo pobre, negro e indígena, quem professa o Candomblé ou Umbanda sofre discriminação e atos de violência das mais variadas formas. Nem mesmo as crianças e adolescentes são poupadas. Vestir uma roupa que identifica sua religião é motivo de deboche, bullying, chegando até mesmo a agressões físicas, bem como casos de proibição de frequentar aulas nas escolas públicas.

Nas favelas do Rio de Janeiro, em nome da chamada evangelização, o racismo religioso é uma realidade cruel, sob o controle dos traficantes evangélicos pentecostais e neopentecostais, que chegam a promover a expulsão de moradores que professam religiões de matriz africana. Podemos incluir como exemplo do fundamentalismo religioso, com ações cada vez mais agressivas contra mães e filhos de santo pois pregam que essas religiões fazem parte do mal, do diabólico e necessitam ser exorcizados e, se não curados, precisam ser expulsos da comunidade.

Segundo registros da Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro Brasileiro e Espírita, pelo menos 40 religiosos foram expulsos pelo tráfico de favelas na cidade do Rio de Janeiro.

“A lei do ensino religioso no Rio de Janeiro data do ano 2000. É anterior ao acordo entre o Brasil e a Santa Sé, assinado pelo ex-presidente Lula da Silva em 2008, que estabelece as aulas de religião nas escolas. Apesar dessa boa intenção a lei não garantiu o combate ao racismo religioso e ainda quebrou o conceito constitucional da laicidade. A lei diz que é preciso ter professores (as) de maneira a oferecer o “ensino” conforme os credos dos (as) alunos (as). É divulgado que a maioria dos docentes tem a “formação” católica ou evangélica. O chamado ensino confessional tem sido uma forma doutrinária para impor os dogmas das religiões dominantes (católicos ou evangélicos).

Apesar da lei determinar que a aula é facultativa, o que acontece na prática é a imposição de assistir ou rezar segundo os preceitos religiosos dominante em determinada região. Existem casos de escolas que já na hora da entrada das turmas por turno, fazem a oração do dia, obrigando portanto que todos os (as) alunos(as) participem desse ato religioso nada ecumênico.

Outro grave problema tem relação com a imposição do credo à teoria criacionista, prejudicando não somente alunos (as), mas também professores(as) que abordam a teoria da evolução.  “Os evangélicos adotaram a teoria criacionista, que credita a Deus a origem do mundo, então, alguns professores preferem não falar sobre o evolucionismo, para não criar conflito” Ana Paula professora pesquisadora sobre a temática.

Ivanir dos Santos, coordenador da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), tem sido chamado por mães que professam a religião de matriz africana em casos de discriminação de alunos(as) que chegaram vestidos de branco na escola, como por exemplo, escola municipal no Grajaú, durante a gestão de Eduardo Paes.  “Cresce o número de pessoas que não têm religião, e nem por isso elas estão afastadas de Deus. A religião pauta a agenda dos governos e, consequentemente, as políticas públicas, e isso é um problema grave.

Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

Outro caso grave aconteceu com a menina Kaylane Campos de 11 anos, atingida por uma pedrada na cabeça em junho do ano passado, aos 11 anos, no bairro da Penha, quando voltava para casa com os trajes do candomblé.

O líder da Umbanda Luiz Fernando Barros, que se viu forçado a aumentar a segurança em seus terreiros, declara que “é nítido o processo histórico em que boa parte do que é produzido pelo negro brasileiro é desumanizado, desvalorizado ou considerado estranho, exótico, folclórico; a ascensão do discurso de alguns neopentecostais estimula a visão da religião africana como ligada ao culto ao demônio, diabo, satanás, rituais satânicos, macumba ou que fazem o mal”. Muitos adeptos que praticam religião no Terreiro Templo do Oriente, na Zona norte do Rio já sofreram discriminação.

“Já coloquei minha roupa branca religiosa no trabalho e vi que as pessoas queriam caçoar, fazer pouco dos meus valores espirituais. Temos filhos que frequentam escola pública e não podem usar as contas (colares religiosos). Já tive estátuas quebradas no meu templo, tentativas de invasão. Uma irmã nossa foi demitida de um hotel na Zona Sul do Rio quando a gerente descobriu que ela era de umbanda. Não foi o argumento oficial, mas ficou nítido para ela”, conta.

No relatório da CCIR há casos como a invasão e depredação do centro de umbanda “A Caminho da Paz”, no Cachambi, na Zona Norte do Rio, em fevereiro de 2015, assim como incêndios e destruição de estátuas no Distrito Federal.

No Rio de Janeiro, apesar de alguns avanços pontuais, os especialistas cobram a implementação de uma delegacia especializada, aprovada por lei em 2011 mas ainda sem previsão para sair do papel. São Paulo e Distrito Federal já criaram tais espaços.

Consultado pela BBC Brasil, o governo fluminense confirmou que “não há previsão para a criação” da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância como determinou a Lei Estadual 5931, aprovada em 25/03/2011. O governo ressaltou, no entanto, papel pioneiro com a criação do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos, em 2012, e disse que todas as delegacias de polícia do Estado estão aptas a registrarem casos de intolerância religiosa.

Na visão dos especialistas, este é um dos principais problemas. “Quando a pessoa vai a uma delegacia, o policial registra a queixa como briga de vizinho, rixa, ameaça. Não aplicar a lei de intolerância religiosa, que prevê a tipificação penal adequada”, diz o professor André Chevarese, do Instituto de História da UFRJ.

Ivanir Costa, da CCIR, diz que ao longo do tempo já presenciou a entrega de documentos às mãos do então presidente Lula da Silva e também da Dilma Rousseff. Na ocasião ouviu promessas, mas até agora, a falta vontade política para implementar medidas nacionais mais eficientes, não foram colocadas em prática, a exemplo do que foi feito na questão da violência contra a mulher.

“Não temos órgãos que acolham denúncias e orientem vítimas em todos os Estados. Não temos uma base de dados nacional, os números são muito discrepantes ao redor do país. Há pouquíssimas delegacias. Delegados, policiais e juízes descumprem a lei. É um cenário muito incipiente ainda”, avalia.

 

O Racismo Religioso também acontece em outros estados

Tal comportamento não acontece apena no Rio de Janeiro. Em 2015, a adolescente Agnes de apenas 14 ano, foi agredida na escola por uma colega e não quer voltar ao Colégio Estadual Alfredo Parodi em Curitiba. A motivação foi uma foto da adolescente, postada no dia anterior em uma rede social, em que ela aparece ao lado da mãe e de uma amiga (que professam o Candomblé). Foi o bastante para que essa colega dissesse que não queria ficar ao lado de Agnes porque ela era macumbeira. Apesar das explicações de Agnes, nada conseguiu conter a agressividade sobre ela que foi chutada e caiu com a cabeça na parede.

Em Brasília, somente em 2015, foram registrados 12 incêndios de terreiros de candomblé.

Os dados do Disque 100, criado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011 e dezembro de 2015, a maioria registrada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Estado do Rio, o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir), criado em 2012, registrou 1.014 casos entre julho de 2012 e agosto de 2015, sendo 71% contra adeptos de religiões de matrizes africanas, 7,7% contra evangélicos, 3,8% contra católicos, 3,8% contra judeus e sem religião e 3,8% de ataques contra a liberdade religiosa de forma geral.

Uma outra pesquisa realizada pela PUC-Rio apontou que os dados são muito abaixo do que acontecem, pois dentre as lideranças entrevistadas de 847 terreiros, 430 relatos foram classificados como de intolerância religiosa, mas apenas 160 foram legalizados com notificação. Deste total, somente 58 levaram a algum tipo de ação judicial.

O trabalho também aponta que 70% das agressões são verbais e ofensas como “macumbeiro e filho do demônio”. As pichações em muros, postagens na internet e redes sociais, invasões de terreiros, furtos, quebra de símbolos sagrados, incêndios e agressões físicas também são expressões desse racismo religioso que vem crescendo de forma preocupante.

Racismo e neopentecostais

Francisco Rivas Neto é sacerdote e fundador da Faculdade de Teologia com Ênfase em Religiões Afro-Brasileiras (FTU), baseada em São Paulo e a única reconhecida pelo Ministério da Educação afirma que “é impossível dissociar a intolerância do preconceito contra o africano, o escravo e o negro. “Os afro-brasileiros são discriminados, tratados com preconceito, para não dizer demonizados, por sermos de uma tradição africana/afrodescendente. Logo, estamos afirmando que o racismo é causa fundamental do preconceito ao candomblé e demais religiões afro-brasileiras”.

João Luiz Carneiro, doutor em ciências da religião pela PUC-SP, especialista em teologia afro-brasileira e autor do livro Religiões Afro-brasileiras afirma que os dois fatores estariam completamente conectados:  “A ligação entre esses dois fatores está muito bem resolvida na academia. As razões profundas na questão racial e o discurso neopentecostal que reforça no imaginário popular que é o macumbeiro, o sujo, o que faz o mal”.

De acordo com o secretário de Promoção da Igualdade Racial, Raimundo Nascimento, após quase 12 anos de sancionada, a intolerância religiosa e o racismo são os principais obstáculos enfrentados nas escolas públicas e particulares. “Eu acredito que ainda tem muito a ver com a questão do racismo. Não é apenas não aplicação porque não tem material didático, não é apenas não aplicação porque os professores estão profundamente preparados. Eu acho que tem a ver aí com o racismo e acho que também tem a ver com a questão da intolerância religiosa. Associa-se muito o debate da 10.639 com a questão do candomblé”, afirma.

Não poderíamos deixar de citar um caso símbolo da luta pelo livre direito à liberdade religiosa: Mãe Gilda- Mãe de Santo filha de Ogun, exposta de forma violenta na primeira capa do jornal com mais de um milhão de exemplares da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) com o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Um dos mais perversos ataques a comunidade do Candomblé. Casa invadida e seu marido agredido, seu terreiro completamente destruído, Mãe Gilda acabou falecendo em razão da violação de sua fé e de sua dignidade enquanto fundadora e dirigente do Ilê Axé Abassá de Ogum. Doente, Mãe Gilda assinou uma procuração para que tudo que havia sofrido fosse objeto de ação na justiça para reparação desse crime de racismo religioso. Como a justiça é lenta, o processo levou cerca de 5 anos, mas conquistou a condenação da Igreja Universal, em primeira instância, determinando que o Jornal dessa igreja publicasse a sentença vitoriosa, por duas tiragens seguidas, além da indenização à família de R$ 1.372.000 (fazendo a equivalência de R$ 1 para cada exemplar da Folha Universal distribuído), reajustáveis pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) desde 1999. Evidentemente a igreja recorreu da decisão que levou mais meses sem qualquer resposta. Mas povo de terreiro de Salvador saiu em defesa dessa ação importante e realizou protestou no Tribunal de Justiça da Bahia, exigindo resposta do júri. Nova vitória com muito AXÉ: a igreja universal foi condenada por unanimidade por danos morais e uso indevido de imagem.

Essa luta do povo de matriz africana deu um novo sentido à crença no direito à liberdade religiosa fazendo com que os movimentos sociais e religiosos iniciassem outra luta: reivindicação da data de morte de Mãe Gilda como o Dia de Luta contra a Intolerância Religiosa no Brasil. Acolhido em 2007 pela Presidência da República, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007.

 

A Escola sem Partido e o racismo religioso subjacente a esse projeto

O projeto Escola sem Partido tem em sua concepção discriminar o trabalho pedagógico crítico e reflexivo nas escolas e punir professores(as) que ousem incluir em suas aulas o conhecimento das religiões de matriz africana como parte integrante da cultura afro-brasileira. Com o argumento da defesa da suposta “neutralidade político-ideológica” em sala de aula, aliada ao conceito de que a educação moral, política e religiosa deve ser autorizada pela família, esse projeto conservador e também racista não leva em conta o direito elementar dos estudantes de liberdade de credo bem como o direito ao conhecimento das diversas ciências para formar sua consciência crítica, a partir de informações diversas sobre a conjuntura nacional, internacional incluindo acontecimentos não somente do presente, como do passado histórico.

É o ataque mais brutal sobre a liberdade de trabalhar os conhecimentos historicamente acumulado pela humanidade em suas versões diferenciadas. É também a tentativa de roubar o direito aos alunos (as) de receber os textos de diversos autores, inclusive com posições diferenciadas sobre a mesma temática, proibindo o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas deixando a escola fora da realidade dinâmica proporcionada pelos meios atuais e variados de comunicação

A luta dos povos de terreiros representa a luta pela sobrevivência e preservação da religião dos orixás, uma forma sábia de garantir a sobrevivência das nações africanas trazidas de forma escravizada para o Brasil. Forma de preservação de sua cultura e relação com seus ancestrais que lhes conferiu AXÉ para proteger seus descendentes reconstruindo as famílias espalhadas e destrocadas pela diáspora africana. As famílias de terreiros mantém laços sagrados de acolhimento, contrariado a lógica fundamentalista e segregacionista tão evidenciada pelo sistema hegemônico capitalista.

Esse é um viés que a CSP CONLUTAS, os sindicatos como o SEPE/RJ através da Secretaria de Combate a Discriminação Racial precisa incluir no debate enquanto racismo religioso, e aprovar ações concretas contra a onda de violência que estão sendo submetidos todos e todas que professam religião de matriz africana, em especial os Pais e Mães de Santo.

Atuando na educação, é papel primordial do SEPE e da CSP CONLUTAS, ampliar o debate da Lei 10.639/08, incluindo o racismo religioso e suas manifestações crescentes em nosso país, avalizadas pela política nefasta, racista da chamada bancada evangélica neopentecostal, reacionária.

 

Rio de janeiro, 15 de setembro 2017

LRP/PSOL- Liberdade e Revolução Popular